Mil palavras: O poder do preto e branco

 

Em maio de 1907, o compositor russo Sergei Rachmaninoff viu a reprodução em preto e branco de um quadro que o inspirou na composição de um grande poema sinfônico, terminado dois anos mais tarde. Rachmaninoff, porém, não foi o primeiro nem o último artista influenciado por esse quadro, tão popular que serviu de referência para outras pinturas, literatura variada (de romances a quadrinhos), teatro, cinema, ballet e até hoje inspira o mundo da música. 


O quadro em questão se chama Die Toteninsel (A Ilha dos Mortos, em tradução livre do alemão), pintado em cores pelo suíço Arnold Böcklin, em 1880. O sucesso da pintura foi tamanha que levou Böcklin a fazer outras quatro versões até 1886 – todas coloridas. Apesar do falecimento do pintor, em 1901, ter isolado sua obra simbolista, considerada fora de moda para os parâmetros modernistas, a Ilha dos Mortos ainda vivia no centro da elite intelectual e burguesa da época. Há quem diga, exageradamente, que no início do século XX, todas as casas de Berlin tinham uma reprodução dessa pintura.

 

Quatro versões de A Ilha dos Mortos. A primeira, de 1880 (superior esquerda); a segunda, de 1880 (superior direita); a terceira, de 1883 (inferior esquerda); a quinta, de 1886 (inferior direita). A quarta versão não está disponível em cores. 

 

Apesar do conteúdo de cada versão ser o mesmo, alguns pequenos aspectos formais eram alterados conforme o tempo passava, seja pela adição de suas iniciais, pelo redesenho das rochas e dos ciprestes e da posição do barco com a mulher. As mudanças mais importantes, porém, foram as alterações cromáticas e de luminosidade, transformando as duas primeiras versões mais melancólicas em uma terceira versão mais leve e uma quinta versão mais sombria e tensa. 

 

A particularidade, no entanto, está na quarta versão do quadro. Destruída por um bombardeio na segunda guerra mundial, só resta dela uma fotografia em preto e branco – talvez a que tenha servido de inspiração para Rachmaninoff. Pela intensidade da escala de cinza, pelas nuvens e pela posição do barco, é possível inferir que esta era uma transição entre a suavidade da terceira para a sepulcral quinta versão, quando a morte já está entrando na ilha.

 

Quarta versão de A Ilha dos Mortos, de 1884.

 

As diferentes atmosferas criadas por Böcklin em cada versão da Ilha dos Mortos podem, em princípio, ser atribuídas às cores usadas. Cada paleta de cores e diferenças de tonalidade mudam a maneira como a pintura é percebida e, em última instância, interpretada. No entanto, o que está por trás da manifestação cromática de cada versão do quadro é o perfeito domínio e a experimentação que Böcklin faz da luz, evocando distintas emoções a partir do mesmo tema. 

 

Se, para a física, a luz é uma dualidade entre onda e partícula, para a fotografia é o mesmo que a tinta é para Böcklin e a partitura para Rachmaninoff: o meio principal que caracteriza a forma de se fazer arte. Não à toa, “photographie”, termo usado pela primeira vez na história em 1834 por Hercule Florence, diz respeito exatamente à fixação de uma imagem pela luz. Seja onda ou partícula, a luz é o denominador comum entre a pintura e a fotografia (e o cinema,  consequentemente) como formas de arte. 

 

Formalmente, obras de arte bidimensionais, como desenho, fotografia ou pintura (e, por que não, imagens feitas a partir de modelos generativos popularmente chamados IA) podem ser compostas por linhas, formas, texturas e cores, predominando somente um desses elementos ou combinando vários deles. A cor, por sua vez, pode ser dividida entre matiz (seu “nome”), saturação (sua “pureza”) e a luminosidade (ou “brilho”), o único aspecto que importa para as artes bidimensionais em preto e branco. Tirar a cor das demais versões da Ilha dos Mortos ajuda a ilustrar a situação. 

Primeira (superior esquerda), segunda (superior direita), terceira (inferior esquerda) e quinta versões (inferior direita) de A Ilha dos Mortos. Cores removidas por dessaturação no aplicativo RawTherapee. 

 

Tanto as duas primeiras quanto a quinta têm pouca variação de luminosidade, mesmo com distinções cromáticas importantes entre elas. Já a terceira, com seus tons pastéis, portanto cores mais brilhantes e menos saturadas, é a que mais se assemelha à quarta, da qual só a reprodução em preto e branco é conhecida. No entanto, a quarta e a quinta guardam uma semelhança importante: o direcionamento lateral da luz, iluminando a cena da esquerda para a direita – e por isso meu palpite de que a versão perdida pelo bombardeio é uma transição, pois une a ampla variação de luminosidade da terceira com a luz direcional da quinta (as três primeiras foram concebidas com uma luz difusa).

 

Privadas das infinitas possibilidades cromáticas, a composição nas artes bidimensionais em preto e branco se apoia no tripé “linhas, formas e texturas”, enquanto o conteúdo (a mensagem, símbolo ou tema) é a superfície onde o tripé está colocado. No caso da Ilha dos Mortos, as versões sem cores guardam diferentes texturas nas nuvens e nas águas, as linhas dos ciprestes são bem definidas (um pouco menos na quinta, onde os ciprestes são um grande espaço negativo e as linhas das rochas prevalecem) e, sobretudo, o corpo sobre o barco é identificado pela sua forma. Aqui, Böcklin usa a luz para dar a forma ao corpo, permitindo identificá-la contra um fundo mais escuro, em todas as versões, independentemente da cromaticidade.

 

Gostar mais ou menos de uma versão ou outra, em cores ou em preto e branco, é uma questão estética pessoal. Rachmaninoff, por exemplo, disse que preferia em preto e branco e que se tivesse visto a original em cores primeiro, nunca teria escrito sua poesia sinfônica homônima ao quadro de Böcklin. 

 

Em um mundo essencialmente colorido, a preferência pelo preto e branco revela o poder de uma composição artística onde os elementos formais são arranjados de maneira a não depender daquilo que os olhos humanos foram naturalmente selecionados para ver. Por imposições técnicas, a fotografia acabou sendo a referência de arte bidimensional em preto e branco em boa parte de sua existência, e seu olhar exclusivamente monocromático obrigou artistas a explorarem as  infinitas possibilidades de variações da luz para dar forma ao conteúdo. 

 

Mesmo com câmeras cada vez mais sensíveis às cores, além de telas e impressoras cada vez mais fiéis à sua reprodução (ou até mesmo mais exageradas), a fotografia em preto e branco está longe de navegar para a Ilha dos Mortos. Por um lado, ela documenta uma pequena parte da história da humanidade. Por outro, o poder estético do preto e branco permite retratar o mundo de uma forma atemporal, abstrata e mágica, explorando símbolos e narrativas, em um momento de saturação imagética, cromática e que o falso passa por fato tão misteriosa e dualmente quanto a luz passa por onda e partícula.

 

Dedicado a Sebastião Salgado, o mais influente fotógrafo documental do século XX.