O Brasil de Florence: releituras fotográficas do Tietê ao Amazonas no bicentenário da Expedição Langsdorff
Há exatos duzentos anos, em 03 de setembro de 1825, partia do Rio de Janeiro uma sumaca com os principais integrantes do que seria posteriormente reconhecida como uma das principais expedições científicas ao interior do Brasil. Chamada Aurora, a embarcação de dois mastros, típica na navegação de cabotagem da época, comum no transporte diário de passageiros, levava a bordo o barão russo Georg Heinrich von Langsdorff (russo), o botânico Ludwig Riedel (prusso), o zoólogo Christian Hasse (prusso), o astrônomo Nestor Rubzoff (russo), os desenhistas Aimé-Adrien Taunay (francês) e Hercule Florence (francês), além de mais 65 homens e mulheres cruelmente escravizadas e recém traficadas do continente africano e que não integravam a expedição e cujo paradeiro nunca conheceremos.

Sumaca na Baía de Guanabara, Rio de Janeiro – Por Hecule Florence. Disponível em https://ihf19.org.br/pt-br/hercule-florence/expedicao-langsdorff-mapa
Foram dois dias de navegação com tempo favorável até o desembarque em Santos. Florence foi, então, encarregado de organizar o transporte do litoral para Porto Feliz, no interior da província paulista, de onde a expedição científica partiu pelo rio Tietê em junho do ano seguinte, rumo à Cuiabá. Inicialmente, a expedição faria esse percurso ao Mato Grosso por via terrestre desde Santos, e depois navegaria da bacia amazônica até o Orinoco pelo canal do Cassiquiare. Porém, por motivos estratégicos, o barão de Langsdorff determinou que sua expedição seguisse pela via fluvial, do Tietê ao Amazonas, passando por apenas algumas léguas de caminhos terrestres. Essas léguas já haviam sido percorridas por outros viajantes, enquanto as vias fluviais eram rotas usadas somente com fins comerciais e, por isso, inéditas em conteúdos científicos.
Assim nasceu o título do documento mais valioso produzido durante os quatro anos da Expedição Langsdorff. Florence, apesar de ter sido contratado como segundo desenhista, registrou minuciosamente o cotidiano da expedição e deixou uma vasta e importante iconografia do Brasil. Intitulada “Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas” (Voyage Fluvial du Tiété à l’Amazonie), essa seção do compêndio ilustrado de sua vida e obra, L’Ami des Arts, relata os percalços da “penosíssima, atribulada e infeliz peregrinação pelo interior do vasto Império do Brasil”, que terminou com seu retorno ao Rio de Janeiro em 1829.
A Expedição Langsdorff, no entanto, não voltou completa ao Rio de Janeiro. Adoecido mentalmente, o barão teve de ser enviado às pressas para a Europa, onde faleceu em 1852. Taunay, o primeiro desenhista, também teve um destino trágico ao tentar cruzar a correnteza do rio Guaporé a cavalo após uma forte chuva, no início de 1828. Provavelmente, outros incontáveis anônimos integrantes da expedição também experimentaram a triste desgraça das águas e florestas tropicais.
Além da dolorosa morte de Taunay e da saúde mental do barão, os materiais de história natural coletados durante a expedição nunca foram publicados como uma obra única e o material biológico restante está, aparentemente, mal rotulado. A desorganização do conteúdo coletado é consequência direta do adoecimento de Langsdorff, já que o responsável por organizar as coleções, tradicionalmente, era o líder da expedição. Por essas razões, Paulo Vanzolini, um notável cientista e compositor brasileiro do século XX, classifica a Expedição Langsdorff como um “desastre completo”. Apesar das duras críticas, certamente exageradas, Vanzolini reconhece que “resultou dessa expedição uma linda iconografia paisagística e antropológica”, referindo-se à preservação do material minuciosamente elaborado por Taunay e, principalmente, por Florence.
Ao regressar para o Rio de Janeiro, Florence deixou uma das versões de seu relato de viagem na casa da família de Taunay, onde foi guardado e esquecido até 1874. Fortuitamente encontrado por Alfredo de Taunay durante uma mudança, foi então traduzido e publicado na revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro sob o título “Esboço da viagem feita pelo Sr. de Langsdorff no interior do Brasil, desde setembro de 1825 até março de 1829. Escrito em original francês pelo 2o desenhista da Comissão científica Hércules Florence. Traduzido por Alfredo d’Escragnolle Taunay”. Passado quase meio século da chegada dos sobreviventes, o diário de Florence foi a primeira, e por muito tempo a única, descrição literária da Expedição Langsdorff.
Fica evidente, assim, que Florence e a família Taunay têm um papel central no reconhecimento posterior da Expedição Langsdorff como uma das mais importantes expedições socioecológicas já realizadas em território brasileiro. Porém, a importância de Florence para a ciência e para as artes está para muito além da sua função documentarista na penosa e longa viagem.
Após a expedição, Florence viveu até o fim da vida (1879) em Campinas (SP), onde se dedicou prolificamente aos estudos e inventos, mesmo com recursos limitados e sem o reconhecimento merecido à época, dada a dificuldade em divulgar seus trabalhos desde a periferia do capitalismo industrial.
Um dos primeiros desafios de Florence após a expedição foi conseguir publicar seus trabalhos de Zoofonia, hoje uma área das ciências biológicas conhecida como bioacústica. A ideia da zoofonia era transcrever os sons dos animais a partir da escrita musical formal, ou seja, usando partituras. Aqui, não há dúvidas de que a expedição marcou o desenhista para sempre, pois a zoofonia foi uma tentativa de documentação mais precisa das belezas que não podia desenhar.
Seria necessário ter viajado como eu, por mais de três anos através dos vastos territórios do Brasil, para saber como é impressionante ouvir uma multidão de animais, com sons tão diferentes um do outro.
Para conseguir publicizar seus estudos sobre as vozes da natureza, Florence investigou a fundo os processos gráficos e criou o chamado polígrafo, uma uma técnica que combina a prensa tipográfica com processos de gravura, que permitia realizar impressões sem maquinários grandes e pesados. Seu protótipo foi feito em 1831 e aperfeiçoado até 1838. Mas foi em 1833 que Florence conseguiu o seu feito gráfico mais relevante: a fotografia.
Sem contato com as pesquisas realizadas na Europa, principalmente por Niépce e Daguerre, Florence foi o inventor independente da fotografia no Brasil, o pioneiro no uso de sais de ouro como substância fotossensível, e o primeiro a cunhar o termo photographie, a impressão a partir da luz. Imediatamente reconheceu seu experimento como arte, mas foi ofuscado pelos trabalhos na Europa que também conseguiram a fixação de imagens mais ou menos na mesma época, porém com mais recursos, holofotes e apoio oficial no centro do capitalismo.
“Dei a essa arte o nome de fotografia, porque nela a luz desempenha o principal papel”
Mas o amplo reconhecimento da fotografia como forma de arte não foi tão imediato. Sofreu resistência como tal na Europa, ao passo que dominava aos poucos o campo do documentarismo. Levou algumas décadas para essa ferramenta substituir por completo o trabalho de desenhistas, a mesma função atribuída a Florence na Expedição Langsdorff, e mais de um século e meio para a popularização do acesso aos meios fotográficos, já em formato digital.
Da mesma forma como a fotografia sofreu drásticas mudanças desde os experimentos de Florence, as paisagens retratadas durante a Expedição Langsdorff também foram intensamente transformadas, especialmente nos últimos 50 anos. Naquele Rio de Janeiro, dominado pela família Imperial no momento da partida da Aurora, morros foram ocupados por comunidades marginalizadas, orlas foram invadidas por prédios de luxo, o mar foi aterrado e a população saltou de 140 mil habitantes para 6,7 milhões. No interior do Brasil, rios foram represados, matas ciliares foram desmatadas, animais foram extintos ou perderam grande parte de seu habitat, povos originários foram deslocados, as cidades expandiram vertiginosamente e muito pouco do que foi desenhado por Florence permanece da mesma forma como era há dois séculos.

Nesse contexto, inauguro essa nova seção no blog sobre projetos fotográficos com meu mais novo projeto de longo prazo intitulado “O Brasil de Florence: releituras fotográficas do Tietê ao Amazonas no bicentenário da Expedição Langsdorff”. Com este novo projeto, pretendo valer-me da arte criada por Florence para discutir os dois séculos de mudanças socioambientais no interior do Brasil.
Assim, nos próximos anos, publicarei as releituras fotográficas de desenhos e passagens importantes da Expedição Langsdorff com base no diário de Florence, bem como análises e comentários sobre a configuração antiga e atual da paisagem, sempre em datas próximas às relatadas no diário (o percurso completo da Expedição pode ser explorado aqui). Ao construir essa narrativa visual, pretendo contribuir com a memória documental das expedições científicas em território nacional, com o legado de Florence e, a partir desse olhar para o passado, buscar refletir sobre as perspectivas para a conservação ambiental no futuro próximo, em diálogo com minhas pesquisas em territórios amazônicos. Serão quatro anos investigando as obras de Florence, seus contemporâneos e antecessores, bem como de documentaristas que estão neste momento fotografando as condições e transformações ambientais do Brasil atual. Afinal, o que nos une a Florence é a paixão pela natureza e pela arte de escrever sobre ela, seja com a tinta ou com a luz.
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Agradeço ao Instituto Hercule Florence pela calorosa receptividade, pela disponibilização de materiais, troca de ideias e pelo incansável trabalho de conservação da memória de Florence, resgatando e difundindo sua jornada, seus inventos e escritos.